Roubadas e Perrengues . Jair Naves e o mar de cerveja em Campo Grande

Quem trabalha com música independente – e às vezes nem precisa ser tão independente assim – no Brasil – e também nem precisa ser tão brasileiro assim – tem certeza de uma coisa quando sai em turnê: dia sim, dia não, sempre tem uma roubada.

Se em parte muita gente tenta justificar tantos perrengues na estrada citando um certo “amadorismo” na cena nacional, temos que convir que nem tudo é culpa dos já castigados promotores de shows país afora. Muito pelo contrário, os caprichos do destino são muitos: pode ser culpa das estradas esburacadas, do tio que dirige a van, de algum descompensado do público e, claro, com relevância estatística, do baterista, esse incompreendido.

O que importa é que os músicos entrevistados pela Soma estão cheios de histórias de roubadas para contar, mas nem sempre dá tempo de explorar o assunto nas entrevistas que publicamos. Por isso, a partir de agora, vamos dedicar uma seção só para elas: todas as terças, vamos trazer alguma crônica, cômica ou trágica, da vida na estrada. Nesta primeira edição, o músico paulistano Jair Naves se recorda da épica viagem que fez com sua banda para Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Com vocês, Mr. Naves:

Roubadas e Perrengues 1: Jair Naves e banda
Onde:
Campo Grande – MS
Quando:
julho de 2010

Jair x Maria Gadú

Quando fomos pela primeira vez a Campo Grande, em julho de 2010, eu não sabia muito bem o que esperar. Era a única capital do Centro-Oeste em que eu ainda não havia tocado – a bem da verdade, eu nunca sequer havia pisado no Mato Grosso do Sul. Minhas únicas referências da cidade eram duas ou três bandas locais que eu conhecia superficialmente, além de lendas sobre um hábito muito peculiar do underground campo-grandense, coisa de que eu falarei mais adiante.

Saímos correndo de um show em Pirassununga, com os heróis locais Suéteres, e, depois de uma exaustiva viagem, finalmente chegamos à capital sul-mato-grossense. Fomos recepcionados por algumas das pessoas mais amáveis que eu tive a sorte de conhecer em muito tempo. Uma das meninas da organização comentou que o show tinha recebido uma reportagem de meia página em um dos jornais da cidade, mas demonstrava um certo receio em nos mostrar a publicação. Quando finalmente pudemos ver a matéria, tive a certeza de que aquela seria uma apresentação memorável. O título dizia: “Jair Naves traz sua poesia a Campo Grande” – ou algo bem parecido com isso. A foto que ilustrava o texto era de uma pessoa olhando para o horizonte com ar contemplativo e meditativo, com um violão apoiado no colo. O grande detalhe é que a pessoa não era eu, e sim, por algum erro bizarro da redação do jornal, a Maria Gadú. Sério. Eu deveria ter enquadrado isso.


Jair Naves, agora é ele mesmo, por Lane Firmo

“A foto que ilustrava o texto era de uma pessoa olhando para o horizonte
com ar contemplativo e meditativo, com um violão apoiado no colo. O
grande detalhe é que a pessoa não era eu, e sim, por algum erro bizarro
da redação do jornal, a Maria Gadú.”

Algumas horas depois, já estávamos no palco nos apresentando pela primeira vez em solo sul-mato-grossense. À medida que a gente percorria as primeiras músicas do set, o público parecia cada vez mais empolgado e ao mesmo tempo, para a minha surpresa, distantemente respeitoso, quase reverente – e é aí que entra o tal hábito peculiar de que eu falei no primeiro parágrafo. Eu já tinha ouvido histórias sobre um costume do underground local de demonstrar satisfação nos shows jogando cerveja na banda – ou melhor, para ser mais preciso, cuspindo cerveja na banda. Confesso que estava ansioso para ver se isso era verdade mesmo, esperando para vivenciar as anárquicas cenas de interação entre artista e plateia que tinham me descrito tão vivamente. Mas já tínhamos tocado cinco ou seis músicas e nada.
 
Sendo assim, compartilhei dessa minha angústia com as pessoas presentes. Disse em tom de piada que tinha ouvido todas essas histórias maravilhosas sobre chuvas de cerveja em Campo Grande e que estava decepcionado. E que, se essa lenda tivesse um fundo de verdade e eles gostassem o suficiente das próximas músicas, eles já saberiam o que fazer.

Cerveja from Above

O que se seguiu a esse meu inconsequente pronunciamento foi chocante. Era como se tivéssemos despertado um instinto quase primata até então dormente nas pessoas – ou como se elas tivessem recebido autorização para começar uma festa nos seus próprios termos. Urros de alegria ecoavam no ar. Vinha cerveja de todos os lados na direção do palco, em ondas volumosas que pareciam sopros de dragão ou qualquer coisa fantasiosa do tipo. Foi bizarro. Os músicos a princípio ficaram desesperados tentando proteger os seus equipamentos, mas a situação chegou a tal ponto que eles tiveram que se render e entrar na brincadeira. Lembro bem de como a gente se olhava rindo durante tudo aquilo. Foi o show mais divertido da turnê até aquele momento.

O Daniel Guedes, talentoso guitarrista que tocava conosco na época e de longe a pessoa mais séria e comedida da nossa equipe naquele momento, disse no camarim: “é, esse fez a viagem valer a pena”. Se ele fez essa afirmação, mesmo após pesar os possíveis prejuízos que eu tinha causado ao seu set de equipamentos, é porque realmente tinha sido bom.

“… uma banda de fora ressuscitar esse costume tinha sido algo surpreendente.”

Quando acabou o show, algumas pessoas vieram me contar que aquele de fato era um costume no underground local, mas que aquilo teve de ser deixado de lado depois de muitos músicos terem ficado possessos com essa demonstração de carinho. E que uma banda de fora ressuscitar esse costume tinha sido algo surpreendente.

Na ocasião seguinte que tocamos em Campo Grande, bastou subirmos ao palco para as pessoas buscarem suas cervejas no bar. Foi assim, em meio a amorosas cusparadas e a um mar de cerveja, que fizemos alguns dos mais memoráveis shows em todos esses anos de estrada.

Fonte:SOMA

Roubadas e Perrengues . Mão de Oito x mão-leve

E cá estamos nós de volta com a nossa nova coluna com as roubadas, perrengues e trapalhadas da vida na estrada. Depois de estrearmos com o Jair Naves e sua experiência cervejeira em Campo Grande (leia aqui o causo), é a vez de Cohen, vocalista do grupo paulistano Mão de Oito, contar da vez que tentaram rapelar seu carro – e nem foi tão longe na estrada, foi na USP mesmo. Sente o drama.

Roubadas e Perrengues 2 . Mão de Oito
Onde . USP . São Paulo
Quando . 2004

Mão leve no rolê

A maior roubada em que nos metemos foi em um show na FEA, da USP, que comemorava um campeonato vencido pelo time de rugby da faculdade. Foi no ano de 2004 se não me engano. Primeiro pela ausência de condições básicas, como tomadas, por exemplo, o que teve como consequência o “corte” de um integrante da apresentação. Porém o mais bizarro foi a situação durante o show mesmo. Antes de começar a apresentação, lembrei que, na hora de descarregar os instrumentos, tinha deixado o carro aberto. Era um carro bem velhinho, sem nada de mais, mas encontrei um jovem levando o toca-fitas. Ele saiu do carro assim que me viu, sem nada, mas já tinha levado e escondido uma mochila minha em uma primeira investida.

Como estávamos atrasados, tive que ir para o show  assim mesmo. Eis que, no meio de uma música, vi o meliante de cima do palco, e ele, que já estava fugindo, também me reconheceu tocando. Quando eu ia anunciar o assalto no microfone, ele se aproximou calmamente e começamos a negociar a devolução dos meus pertences durante o show. Falou pra eu procurá-lo logo que acabasse a última música que ele ia estar esperando a gente. Como a mochila só tinha material didático – já que eu era professor e dava aula de geografia na época -, ele se sensibilizou, devolveu as coisas e ainda saiu elogiando nosso som. Literalmente uma roubada. Ou quase…”
Fonte:SOMA

Roubadas e Perrengues . Lise perdido em Aricanga

E como o ano começa depois do carnaval (você já ouviu essa quantas vezes desde a quarta-feira de cinzas?), nós aproveitamos o fim de fevereiro para voltarmos com a nossa intermitente coluna Roubadas & Perrengues, onde convidamos músicos para dividirem seus piores – e por vezes mais engraçados – momentos da vida na estrada.

Quem inaugura a coluna em 2013 é Daniel Nunes – que toca nesta sexta (22) em São Paulo com sua banda Constantina. O músico mineiro resolveu compartilhar um momento bem tenso que passou com outro projeto, o Lise, e de brinde ainda liberou pra geral um som inédito do grupo, “Sábado”. Ouça e baixe a parceria do Lise com André Tchitcho e confira a história de terror em Aricanga.


Roubadas e Perrengues 3
: Lise
Onde: Aricanga – ES
Quando: 2010

Se não estou errado, aconteceu após um convite aceito em 2010 para realizar um concerto e oficina em um centro cultural na cidade de Aracruz, Espírito Santo. Lembro-me bem do convite. Foi feito pelo Erivelton. Conheci o Erivelton em 1999 durante uma tour da minha antiga banda, Libertinagem. Foi um dos organizadores de uma turnê que fizemos por algumas cidades do Espírito Santo. Na época Erivelton era baterista e também cantava na banda Peste Negra, ele tinha uma performance visceral. Nos encontramos algumas outras vezes durante alguns Carnavais Revolução, até que o Libertinagem e o Mansão Libertina se desfizeram e me desprendi um pouco do hardcore. Mas sabe como é né? É como dizem: “você nunca consegue caminhar sem que uma parte de suas experiências esteja com você”. E para mim foi assim. Foi na época em que conheci Erivelton, que realmente percebi o que a música significava para mim, então logo após um contato dizendo sobre o Centro Cultural Pântano, eu não pensei duas vezes. Rever amigos e poder colaborar com uma ação “do it together” que levava para a comunidade local iniciativas que considero relevantes. Fui com Lise, meu outro projeto musical.

Lembro que tinha agendado este show com o grande Ermano Dedig. Ele toca as belas guitarras do disco Qualquer Frágil Fio De Fantasia. Comprei as passagens para irmos de trem até Aricanga, estação mais próxima de Aracruz. Logo cedo, um desencontro. O trem saiu, Dedig não chegou, e eu segui viagem. Um dos detalhes no trem é que nele não existe bagageiro. Estava sozinho, com alguns mils reais em equipamento nas malas, e uma “pequena” dificuldade de sair da poltrona para ir ao banheiro. Além disso, o banheiro do vagão estava “defeituoso”! Tinha de atravessar dois vagões para chegar e esse trajeto demorava alguns bons minutos, fora a fila. Não me lembro da quantidade de bagagem, só sei que eram muitas e pesadas. Como iria fazer o concerto e dar uma oficina, fui armado.

No deserto

Enfim, consegui realizar a viagem de 12 horas até Aricanga que não me lembrava como era.

Lá não é uma estação como conhecemos, mas sim uma parada no meio do nada, não possui nem iluminação. Lá, descemos em uma estrada de terra, que de um lado se vê uma “rodovia” e do outro uma favela. Lembro de ter pedido ao Erivelton que me buscasse às 19h. Foi quando às 19h o trem “aportou” e todos desceram. Nada vi a não ser um táxi levando os poucos que ali estavam. Sozinho com tudo aquilo nas mãos, nada me restava a não ser esperar.

Alguns minutos após a “desertificação” da paisagem, vi algumas pessoas se movimentando em minha direção. Foi quando “vendo” a cena, comecei a “caminhar” em direção à “rodovia”, sem saber para onde ir. Comecei a “andar”, apenas para sair dali. Nada vi por perto e lembro que pensei sobre o fim. Pensei nas escolhas da vida. A pontuação no instante que o conheci, o significado de tudo que fazia em 99, um começo de todas as minhas construções, e alguns anos depois, de certa forma me vi em um fim das minhas construções. Tudo que tinha materialmente e não apenas de material, mas de sonhos, estavam naquelas malas e computadores.

Foi quando pontualmente às 19h58 um carro passa ao meu lado e para:

– Dani?
Fonte:SOMA

Mude para versão para dispositivos móveis deste site