Magnífica 70, novidade série da HBO, explora de forma ficcional a produção cinematográfica da Boca do Lixo

De todos os aspectos sob os quais a ditadura no Brasil pode ser retratada, há um que ainda rende muito caldo: a prolífica produção de cinema em uma idade em que a explosão da sexualidade era rebatida no mesmo nível pela rijeza da increpação. Fazendo jus ao lema de sua matriz, que há anos se propõe a ir além do que é considerado padrão na televisão, a HBO Brasil estreia nesto domingo, 24, a primeira temporada (com 13 episódios) de Magnífica 70 um retrato livre, mas esteticamente impecável, do que foi o folclórico polo cinematográfico reciprocamente publicado porquê Boca do Lixo. Localizado no meio de São Paulo, o lugar foi responsável por produções de faroeste, terror e outros gêneros, mas é mais lembrado porquê o epicentro da pornochanchada.

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A coisa mais pornográfica de Magnífica 70, porém, é ter Paulo César Pereio no papel de um general, conforme define, entre risos, o protagonista da série, Marcos Winter (Vicente). Essa é a mais deliciosa ironia da série: Pereio, ícone do movimento e um dos artistas mais provocadores da dramaturgia pátrio, interpreta um dos militares que tanto censuraram artistas na dez de 1970. Ele vive o sogro de Vicente, sujeito abobalhado e manipulável, que acaba na função de censor de filmes nos anos de chumbo. Isso até se encantar por Dora (Simone Spoladore), atriz de uma das produções vetadas por ele, e ser seduzido pelo universo de caos que encontra nos bastidores da Boca. Dora, por sua vez, também desemboca nesse mundo por casualidade. “Ela é uma personagem-esfinge. Entra na Boca do Lixo para roubar o moeda do filme, mas acaba se apaixonando pela teoria de ser atriz e pelo Vicente”, conta Simone.

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Se a temática de Magnífica 70 não é pornográfica, tampouco ela tem aspiração de ser uma peça histórica sobre a ditadura. “A série fala sobre a cachaça que é o cinema. Uma profissão que não oferece nenhuma segurança econômica, nenhuma firmeza, que faz você se delongar da família e dos amigos, que se torna uma preocupação, mas que você não consegue largar”, define o corroteirista, produtor e diretor-universal Cláudio Torres, que fez a adaptação a partir do roteiro de um longa. “S original era uma comédia com uma premissa poderosa, que se provou muito contemporânea, no que diz reverência à dramaturgia que assola o planeta: personagens contraditórios, falhos e humanos”, define Torres.

Fonte:Rolling Stone Brasil

Vermes do Limbo . A barata na boca da piranha

Antes de me mudar para São Paulo, em 2004, vivi 11 anos em Londrina, cidade de pouco mais de 500 mil habitantes no Norte do Paraná. Durante esse tempo, me envolvi com a cena cultural de lá, que basicamente se espreme entre as (historicamente boas) políticas municipais e o fluxo volátil do circuito universitário. Conheci os capítulos locais da trajetória de ícones de vanguarda como Itamar Assumpção e os irmãos Barnabé, aprofundei meu contato com o teatro por meio do FiLO, dos grupos e autores da cidade – de Mário Bortolotto a Mauricio Arruda Mendonça e Paulo de Moraes –, frequentei exposições de arte, vi (e participei de) espetáculos de circo experimentais. Sobretudo, me envolvi com o rock: tive bandas, projetos, fiz amigos, ganhei amor, perdi dinheiro e participei de uma cena.

Hoje, quase 10 anos depois, poucas bandas da época se mantiveram relevantes, ou mesmo ativas. Mas, à medida que o tempo passa, fica cada vez mais claro que o maior expoente artístico daquela geração foram, e seguem sendo, os Vermes do Limbo. Importante observar que aqueles 10 anos foram talvez os mais férteis do underground londrinense desde o começo dos anos 1980: de picos históricos como El Gran Mausoleo e o antigo RU a festas de república, campeonatos de skate, festivais e shows internacionais, a cidade voltou a existir no circuito nacional. Não que isso tenha rendido notoriedade além dos limites municipais (ou, se muito, regionais) a bandas como Cyclone Pill, Fahrenheit 451, Convulsão, Hard Money, The Cherry Bomb, Os Picaretas, Espíritos Zombeteiros (a minha última banda por lá), Búfalos D’Água ou Maquinaria. Se a cena era prolífica, era também incrivelmente inepta em circular pelo país. Mesmo assim, nomes como Grenade e Subtera se tornaram razoavelmente bem conhecidos.

Os Vermes padeceram do mesmo problema daquelas e de tantas outras bandas isoladas no interior, mas isso não diminui seu valor artístico. Lançando mão de procedimentos que extrapolam a barreira do meramente musical, as criações da banda – que é basicamente o duo formado por Vinicius Cebola e Guilherme Pacola, com aparições episódicas do guitarrista Fabio Fujita – são não apenas o melhor retrato daqueles tempos, mas a trama que conectou o rock feito na cidade ao melhor da arte local. Mais do que isso, o Vermes do Limbo deu um senso de continuidade e diálogo entre a nossa cena e a tradição que mencionei brevemente no primeiro parágrafo, tanto em aspectos formais como em termos de ethos artístico. Ainda que isso tenha se dado, na maior parte do tempo, de forma incidental: apesar de fãs e colecionadores de discos da Patife Band, Arrigo e outros (parte do papo que tive com eles no começo de abril, aliás, foi ao som de Goemon, raridade até entre colecionadores hardcore de vinil), os Vermes nunca tentaram se comunicar formalmente com o Boca de Bode (espetáculo multi-artístico concebido e encenado na cidade, que deu na Vanguarda Paulistana). Tampouco buscavam alguma conexão com grupos de teatro, arte contemporânea ou circo. Apesar de se definirem como punks, raramente eram visto como mais do que excentricidade pelas cenas punks e HC locais. E, mesmo sendo o completo oposto do que se espera de uma banda cover de faculdade, eram arroz de festa de república, dividindo cartazes de cervejadas com grupos de MPB, pop rock e outros gêneros mais alinhados ao que se espera desse tipo de evento.

Sem buscar nada além de “fazer algo firmeza como as bandas que a gente gosta”, como me disse o Cebola no papo que tivemos em um sábado de abril, os Vermes do Limbo funcionaram como uma antena insólita daquele zeitgeist interiorano, que não descambou nem para o pastiche pós-moderno nem para o formalismo anódino. Como catadores de tranqueiras soltas na noosfera local, os Vermes se apropriaram do punk, do hardcore e do rock progressivo; da vanguarda erudita, do free jazz e do improv; do brega e do sertanejo, da arte contemporânea, da performance e da instalação; da cultura do sample, do spoken word e ainda de um senso de humor meio moleque, meio caipira, para, roubando o que o Caetano disse sobre a Rita Lee, construírem a mais completa tradução de Londrina – ou, pelo menos, da minha Londrina.

Mas o fato é que o Vermes mudou pra São Paulo e agora não é mais problema do Paraná. Desde o dia 11 de abril, a banda colocou no Bandcamp seu sexto disco, Adeus Igapó. Na quinta, 18, ficaram prontas as primeiras cópias do vinil, o primeiro que eles lançam em 17 anos de estrada. Fui à casa do Pacola na tarde que ele e o Cebola tiraram para fazer a capa/gravura que acompanha o disco. Entre umas e outras, ouvimos o disco novo e mais uns tantos da coleção do Zimba, coloquei a mão na massa com os bróders no silk e gravei a prosa a seguir.


Adeus Igapó, o vinil, em frente e verso

Fala aí do disco, Pacola!

Pacola:
Então, as músicas que estão aí são um resumo de 3, 4 anos tocando em SP. Tanto que tem uma que chama “Kayoriver”, que é sobre um riozinho que passa aqui na Cayowaa. Era um corguinho que descia e passava atrás da casa do Cebola. A gente fez essa música em cima do rio, na edícula que é uma invasão, que o proprietário da casa construiu em cima do rio.

<a href=”http://vermesdolimbo.bandcamp.com/track/sim-mestre-kayoriver”>Sim Mestre + Kayoriver by VERMES DO LIMBO</a>

Ainda tem o riozinho?

Cebola:
Tem, é canalizado, quando chove dá mó enchente. Transborda. É o Kayoriver (risos).


“O cara da Polysom me ligou: ‘Olha, a
última faixa do lado B tem uma frequência que foge dos nossos padrões’
(risos). ‘Pode deixar!’, eu respondi. [Fica alguns segundos em silêncio e
faz cara de incrédulo] ‘Se deixar, vai pular a agulha…’. ‘Tudo bem,
se pular, melhor ainda.’ (risos a rodo)”


As composições de vocês sempre tiveram um procedimento mais de sample, de colagem: são células e semi-riffs cortados e colados abruptamente. No começo, essas células eram bem curtas, mas desde o último EP estão maiores, parece que tem uma vibe meio prog rolando…


Cebola:
Ah, as músicas ficaram mais amplas, a gente tá mais velho, né? Você quer trabalhar com mais espaço (risos). Não quer aquela coisa apertadinha, juntinha. É espaço e tempo – tempo da vida, de resolver as partes da música, de se preparar pra tocar. Isso tudo reflete no som.

Pacola:
Antes a gente se fodia pra tocar, era tudo muito complexo. Então pra que sofrer tanto? A gente continua errando, mas erra menos, por que as músicas são mais tranquilas… [a última faixa do lado B chega ao fim e ele chama a atenção para uma coisa]. Se liga no fim do disco… [ouvimos um som agudo, como se o falante tivesse um defeito e pifasse]. Quando ouviu isso, o cara da (fabricantes de discos de vinil) Polysom me ligou: “Olha, a última faixa do lado B tem uma frequência que foge dos nossos padrões” (risos). “Pode deixar!”, eu respondi. [Fica alguns segundos em silêncio e faz cara de incrédulo] “Se deixar, vai pular a agulha…”. “Tudo bem, se pular, melhor ainda.” (risos a rodo)

“Arte não é pra qualquer um, cara!”

Lembrei daquele dia em Cornélio Procópio, que os caras mandaram vocês pararem de tocar.

Cebola:
Nossa, esse dia… Eu querendo tocar e o Fujita largando a guitarra. O cara ligou um estrobo que ficou o tempo todo na nossa cara. A gente estava super ensaiado, ensaiava todo dia na época. Aí, na passagem, o cara falou “toca um som aí”. Tocamos uma música nova, que estava ensaiadinha… O cara olhou, mexeu os botões, e mandou “Ô, meu, passa uma outra mais bem ensaiada, que eu vou regular de novo” (risos). Daí eu olhei e falei nossa, a gente tocou perfeito, o cara tá de brincadeira (mais risos). Ele falou “toca um Legião aí, que eu regulo no Legião” (risos pra caralho).

<a href=”http://vermesdolimbo.bandcamp.com/track/pontinha-du-capeta”>Pontinha du Capeta by VERMES DO LIMBO</a>

Engraçado, porque muita gente que gosta de um rock mais quadrado não saca o Vermes, mas não acho vocês uma banda só “para iniciados”. Já vi muito tiozão maluco e gente que não é do rolê em geral curtindo vocês.

Cebola:
Isso é engraçado, porque eu já vi uns figuras… A gente tocou muito tempo em Londrina, e você sabe como é lá: quando rola uma festa, às vezes é a única festa da cidade. Então você tocava pra todo mundo.

Pacola (citando a si mesmo):
“Arte não é pra qualquer um, cara!” (risinhos)

Cebola:
Ia metaleiro, ia o tiozinho bêbado, ia o Nego Bala [figura lendária da cidade, este cidadão aqui]…

Já vi o Nego Bala curtindo paca no show do Vermes…

Cebola:
Bom, mas até aí eu já vi ele curtindo em todos os shows que eu fui (risos).

Pacola:
Lembra aquela vez em Primeiro de Maio (outra cidade no Nortão Pioneiro paranaense)?

Cebola:
É, subiu um monte de gente pra cantar no palco, galera recitando poema… Viam que era um negócio descontraído, meio loucão… Se sentiam à vontade pra subir e falar o que quiserem. Teve vários casos assim.

O som do Vermes é pra quem?

Cebola (pensativo):  Pra nós. Pros Vermes.

Pacola: Sempre foi a procura de algo fora do senso comum, de desconstruir essa ideia de riffs, de começo, meio e fim do rock.

Cebola:  Em certos momentos, a gente queria deixar meio… Vai fazer um som, começa a embalar, corta! É um corta barato o tempo todo, a gente percebia muito isso nos shows. Quando entra um riff e você imagina que vai, o negócio muda, então é o tempo todo meio cortado, corta-barato mesmo.

Esse lance de cortar barato era proposital?

Cebola: Era! Chega, já deu! Para com essa melação (risos).


The Pacola’s goma: vinis do Goemon, Robertinho do Recife e Black Juniors dividem espaço com memorabilias londrinenses e outras quinquilharias.

“Paulistano tem uma facilidade muito grande de se influenciar por coisas ‘cool’ americanas”, avalia Cebola

Então essa música não é só pra vocês…

Cebola: Claro, eu não lanço um disco só pra mim e vou tocar numa caverna. Mesmo assim um morcego vai tá ouvindo (risos). Música é pra todo mundo ouvir. Mas a forma de construir é preocupação nossa, a gente investe tempo, dinheiro em manter isso. Eu tenho família, trabalho… É porque a gente acredita. Já que estou gastando esse tempo, vou tentar me agradar, e talvez agradar outras pessoas. A gente tem esse cuidado de fazer arranjo, a gente é fissurado em disco, e queremos fazer algo firmeza como as bandas que a gente gosta.

Pacola: Mas esse lance de break… Às vezes a gente tá fazendo uma jam e sai uma coisa errada, torta. A gente fala, pô isso ficou bom. Paramos, voltamos e repetimos aquela parte errada. Aí a repetição do erro vira um acerto. Isso é o Vermes.

Esse é o tipo de coisa que tem a ver com free jazz, mas também se assemelha a um processo artístico, ao que um Jackson Pollock fazia, por exemplo. Às vezes acho mais útil comparar vocês a um cara como o Haim Steinbach ou o Daniel Lisboa do que a outras bandas. Mas muita gente tem uma barreira de leitura mesmo, de não entender que o que vocês apresentam é uma coisa estruturada…

Cebola: Você tem que educar o ouvido, né? Tinha muita coisa que quando eu ouvi pela primeira vez eu achava um terror, e hoje eu curto pra caralho. As pessoas que gostam do Vermes têm um ouvido mais treinado. Lógico, pega um ou outro maluco, mas… 

O primeiro pôster: “Não deu certo, não tá bão, cara!”

Vocês veem a banda de vocês como uma banda de rock?

Cebola: Claro!

Pacola: Baixo e batera, quer mais rock que isso?

E o que é rock?

Cebola: Rock é isso que a gente tá fazendo (aponta para o Pacola, que limpa a tela de silk). Limpar uma tela de silk com solvente, tomando cerveja… A gente joga limpo! (risos) Tem essa atitude rock, punk, de ficar aqui produzindo coisas sozinho. O rock, quando começou, assustava as pessoas.


“Rock é isso que a gente tá fazendo, limpar uma tela de silk com solvente, tomando cerveja… A gente joga limpo!”

Ao mesmo tempo, o Vermes provoca muito uma sensibilidade roqueira.

Pacola: Muita gente cai de gaiato, vai pra um lugar procurando uma balada e vê a gente tocando. Como aquela vez que a gente tocou no Studio SP. Não gostei muito daquele show porque tinha uma galera que não fazia ideia do que estava acontecendo. Mas isso sempre acaba influenciando a gente e provoca aquelas pessoas. Nosso som não é acomodado.

Cebola: Eu tenho dó de pessoas que seguem o mesmo estilo musical a vida toda. Às vezes o cara tá até preparado pra ter uma outra percepção, mas não ouve por preconceito mesmo. É sempre difícil assimilar algo que sai da sua zona de conforto. Eu, por exemplo, não ouço música clássica naturalmente, mas um dia eu comecei a ouvir porque achei importante. Você tem vontade de ouvir música clássica normalmente, Zimba? Coloca de vez em quando um Beethoven, um Bach na vitrola?

Pacola: Eu coloco Walter Carlos. (risos)

Gostei quando o Cebola falou no começo da entrevista, que as músicas novas estão com espaços maiores porque ele tá numa busca de mais espaço na vida. O que mudou no som de vocês?

Pacola: O que mudou foi a vida. A vida mudou a gente, do começo do Vermes pro que é hoje. A gente ficou 3, 4 anos sem tocar. Essas músicas novas são mais simples, são um reflexo do que a gente escutou e viveu nesse período. Tanto é que eu cheguei aqui em SP e a gente teve essa dúvida, será que continua como Vermes? Não tínhamos dúvidas de continuarmos juntos, mas será que a banda era isso? E aí ficamos com o Vermes, né?

Cebola: Pra mim funciona também como uma válvula de escape, cara. E é uma paixão, que vem antes mesmo de eu ter minha família (o Cebola é casado e tem 2 filhos, sorry gatas).


De novo, agora sem errar as cabeças…

As suas músicas novas refletem essa vida em família, você acha?

Cebola: Pra caramba. Tem música que a gente fez agora, “Shi-tzu Wi-tzu”, “Such a Lady” (inéditas) que são os apelidos carinhosos dos meus filhos, que vieram deles.

Pacola: Cada um veio com um pedaço da música e a gente fez em cima dos meninos.

Cebola: Porque tipo… Pra eu sair pra tocar, se minha mulher quer ir junto eu tenho que contratar uma babá. Então já começo a morrer com uma grana daí (risos). Cem pila eu já pago pra tocar. Mas isso te mantém vivo. Tudo tem que ter um equilíbrio.

Pacola: Tem também uma necessidade de tocar. Eu preciso tocar.

Cebola: É, é que nem transar. E acho que toda pessoa que trabalha com criação também tem que deixar levar, sacou? Não ficar muito preso em seguir uma linha, porque você vive um monte de momentos na vida. Sua vida é um shuffle, tem uma hora que você tá mais calmo, em outras tá mais acelerado. Agora é a época do nosso respiro, de pensar melhor. Pode ser maturidade. E não é só a música que influencia. Tudo muda, tudo faz parte. O Neil Young gravou disco de tudo que é jeito diferente…


“Sua vida é um shuffle.” Papel de presente, ganchos, monóculos e soco inglês – Pacola: “Era de um tio avô meu, doidão, que morava no fundo da casa da minha vó”.

Pacola: O Metallica, né? (risos a rodo)

Cebola: Esses caras também têm um lado da gravadora envolvido, de ter que vender disco, gravar num determinado prazo etc. A gente não tem nada disso. E acho mesmo que, por mais que a gente mude, a essência vai estar sempre ali.

Pacola: A gente nunca se preocupou em fazer um som assim ou assado. Foi saindo do jeito que saiu, da forma como a gente se sentia confortável tocando. O jeito que a gente conseguia fazer música.

Tem um aspecto do som de vocês que tem mais a ver com rap do que com rock: essa coisa do sampleamento, de citações entrecortadas de ideias. Vocês acham que isso tem a ver com a cultura do disco?

Cebola: É, a gente começou a ter interesse por música nos anos 80, muito por meio do skate.

Pacola: E a gente pegou muito essa coisa do vinil…

Cebola: Aí veio o CD… Na era do CD a gente montou banda e essa coisa do disco foi acabando. A nossa geração, que nasceu no vinil, cresceu no CD, quando foi gravar não existia mais disco! Pô, bem na nossa vez de gravar? Então, gravar um vinil é ao mesmo tempo é uma coisa saudosista, um objeto pra manusear. Você traz a música pro objeto, vai um pouco além. De repente é um resgate lá da infância musical. O cara do rock é quadrado. A gente ouve de tudo, por isso que a gente tem um monte de disco e quer lançar disco, que é uma coisa do rap. O cara pra samplear tem que ouvir de tudo, tem que ter conhecimento e gostar realmente de música.

Pacola: A gente aprendeu a pesquisar também, ir em sebo, ouvir música brega, discos de efeitos sonoros. Tem coisa que nem é música, tipo esses discos (mostra um pacote de compactos de bibliotecas de efeitos). Eu tenho por curiosidade mesmo, por gostar de música e de disco.

Existiu um rompimento entre o astronauta libertado do Tom Zé e a música super referencial de hoje.

Cebola: Tudo um dia se desgasta. Chega num ponto em que as ideias acabam. É assim com a gente, comigo, no meu próprio trampo. Aí você vai revendo ideias antigas, coisas que você pode modificar com o que tá acontecendo hoje, tem um resgate. O novo hoje é difícil. E tem uns caras que querem forçar, fazer o diferente pra ser diferente.

Pacola: Depende também de até onde você conhece. Esses dias eu estava num posto de gasolina, um moleque viu uma máquina de escrever e o pai dele falou “isso aí é um computador-impressora” (risos). O moleque falou “nossa, mas cê escreve e já imprime?” “É!” (risos paca). Pra ele era uma novidade.

“Esses dias eu estava num posto de gasolina, um moleque viu uma máquina de escrever e o pai dele falou ‘isso aí é um computador-impressora’. O moleque falou ‘nossa, mas cê escreve e já imprime?’ ‘É!’ Pra ele era uma novidade.”

O rock hoje é muito vítima do passado, de uma tradição?

Cebola: Ué, rock já é uma palavra antiga. Quando falaram pela primeira vez em rock? Sei lá, anos 1920, num jazz? É uma gíria, um nome… Mas desde sempre existiram pessoas com atitude no rock. A música é um veículo, é sensorial. Quer mexer com o pensamento, quer fazer um protesto, quer fazer uma melodia bonita? Às vezes você se emociona com uma música cantada em uma língua que você não entende. Às vezes nem em português você entende, mas aquela melodia te arrepia. Isso é uma propriedade da música.

Vocês se preocupam em se repetir?

Cebola: Já chamaram a gente de cover de nós mesmos (risos). E a gente tem os nossos clichês…

Pacola: Engraçado que hoje nossas músicas estão mais curtas (as inéditas, não as que entraram no disco).

Cebola: E ainda tem um baixo que imita guitarra. As músicas novas estão mais complexas, mas são mais curtas. E também têm alguns experimentos com vocal.

Pacola: Acho que isso é um reflexo também de como a informação chega pra gente. Às vezes, na internet, você vê 30 segundos de uma coisa que tem 1 minuto. E aí já aparece outra coisa pra você ver. É tão fácil o acesso, as coisas chegam por redes sociais ou por email o tempo todo… Mas você nunca para mais de 1 ou 2 minutos pra prestar atenção. Você lê um pouquinho e pula, ouve o pedaço de uma música e pula… Sem a gente pensar nisso, a nossa música também está ficando assim.

<a href=”http://vermesdolimbo.bandcamp.com/track/bailarino-pichador”>Bailarino Pichador by VERMES DO LIMBO</a>

Isso lembra o que o Simon Reynolds falou sobre a relação de caras como o Oneothrix Point Never e o Nico Muhly com a internet. A internet se tornou cenário e influência não só da arte, mas do modo de vida atual em geral. Também tem gente como o Ariel Pink, que faz músicas milimetricamente fabricadas para soarem como canções imaginadas de um underground do começo dos anos 1980.

Pacola: É, a primeira vez que eu ouvi Ariel Pink achei que era 80 na veia.

… Que é essa coisa que eles chamam de pop hipnagógico, feito em cima de coisas que esses caras teoricamente ouviram sem querer na vitrola dos pais quando eram moleques.

Cebola: Isso eu vou te responder daqui a alguns anos. Meus filhos sentam lá e eu ouço esses bregas, ouço de tudo.

Pacola: Ele tá fazendo um laboratório com os filhos (risos).

Cebola: O Damião gosta, curte ouvir um The Clash e curte ouvir um Pepeu Gomes. O cara tá lá ouvindo os bregas do pai, mas às vezes o brega do pai era massa. Que nem eu ouço um monte de brega com levada, os moleques curtem.

Pacola: E coisa que a gente não imaginava escutar um tempo atrás. Tanto é que a gente fez uma seleção de músicas pra discotecar na [30ª] Bienal, a convite do Robinson Borba, em que a gente usou bibliotecas de efeitos e pedaços de vários discos brasileiros…

OIDARADIO SESSIONS – VERMES DO LIMBO by Oidaradio on Mixcloud

Cebola: Foi ouvindo disco que a gente começou a pesquisar e descobrir como a música brasileira é rica. E buscar sonoridades.

E as coisas que seus filhos ouvem de você sem querer? Por exemplo, vamos voltar pra Piranha aqui…

Pacola: Ê, meu, cê encanou com essa piranha!

Cebola: Acho que cê tá querendo uma piranha! (“ahuahuahuahua” e por aí vai.)


Explicação: desde o começo da conversa, eu tentava convencer os dois de que o som do Vermes pode ser explicado pela Piranha acima, presa num elástico na parede do Pacola. Um peixe da nossa fauna fluvial transformado em uma memorabilia típica de beira de estrada brasileira, posteriormente descartada e aqui ressignificada com outros objetos descartáveis, como uma barata falsa e folhas tão falsas quanto.

Essa Piranha é um puta símbolo do brega brasileiro!

Cebola: É bicho, mas hoje também tá cool você ter um bicho empalhado, um bicho seco em casa…

Tudo bem, mas sou mais a Piranha do Pacola que os bichos empalhados dessa galera.

Cebola: Ah, gosto de cada um… O Lemmy coleciona coisa militar, tem nego que tem cada gosto bizarro.

Mas isto aqui (a Piranha) é diferente.

Cebola: Claro, isso é uma intervenção.

Exato. E é um símbolo do brega?

Cebola: É um símbolo do Brasil, cara! Dos rios brasileiros!

Ah, aí você matou a parada…

Cebola: Pois é… Igapó, lambari? Piranha e Rio Tucupi? Kayoriver? Vem tudo do mesmo lugar. Sabe o que é interessante? Cada um vem com uma novidade… Tem uma época que eu falo, tô numas de comprar Robertinho do Recife. Aí o Pacola vai lá e acha um [disco] foda. Aí ele vem depois e diz “olha esse cara”, e a gente fica nessa troca, sabe? (Hesita, pensativo) Sabe qual é, meu? O Pacola é meu marido! (risos)

<a href=”http://vermesdolimbo.bandcamp.com/track/igap-lambari”>Igapó Lambari by VERMES DO LIMBO</a>

SAIU! Só tem 300 desses, é bom você se agilizar pra comprar um

Pacola: Tipo, escuta isso aqui (põe na vitrola o disco E Agora Pra Vocês… Suíngues Tropicais, do Robertinho do Recife. É tanto suingue torto que faz o Big Boys parecer rock industrial).

Cebola: A gente ouve muita coisa antiga, o lance é saber sintetizar as coisas. A nova MPB ainda…

Pacola: As meninas de SP ainda imitam a Gal, até no sotaque. Elas têm letras boas, cantam bem… Mas estão numa mesmice.

Cebola: Acho que é um medo um pouco de cair naquele ambiente que a gente vive… Cair no…

No Limbo! (risos)

Cebola: Isso! Cair no subterrâneo, no underground.

Arnaud Rodrigues vocês também curtem, né?

Cebola: A gente curte, a parte experimental, o bom humor, a coisa do Baiano e os Novos Caetanos com o Chico Anysio. As trilhas dos [filmes dos] Trapalhões têm muita coisa boa, o Arnaud compôs muita coisa n’O Mágico de Oroz. Se você souber pescar vai ver que não era só um humor abestalhado.

Pra terminar, eu preciso passar por isso: o que tinha de especial naquela geração de Londrina?

Cebola: Era uma época sem internet, sem nada, mas todo mundo estava antenado. O skate teve um papel importante nisso, mas veio também Itamar, Robinson Borba, Arrigo… Estava no ar da cidade. Tem muita gente lá envolvida com música. Também sempre houve algum incentivo cultural da prefeitura.

Pacola: Também tem outra coisa: aquela cidade foi construída por peão, estrangeiro e puta. Isso tornou Londrina o que ela é.


Se você chegou até aqui, merece saber onde comprar o vinil do Vermes. Enjoy:

http://mammavendetta.blogspot.com.br/

Fonte:SOMA

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