Dois papos ligeiros sobre increpação (II) | João Sumo


Toda increpação é burra, não é demais repetir. A increpação que veta, proíbe, condena, oculta o que o artista cria para ser visto, lido ou ouvido por todo o mundo. Increpação dissemelhante daquela a que me referi, de sugerir idade, hora e lugar mais adequados para que a obra de arte seja mais muito apreciada. Sugerir, sim, nunca proibir. Quando nos lembramos que, na flor de seus vinte anos, Vinicius de Moraes foi censor de filmes, podemos apostar que sua tarefa era somente a de expor com que idade podia-se ver, por exemplo, sua favorita Marlene Dietrich em “O criancinha azul”, filme bastante ousado para… 1930. Hoje, Vinicius estaria rindo de tudo aquilo.

São muitos os exemplos de estupidez cometida por nossos censores. Bastaria um dia consultando os guardados do Registo Pátrio, na Rossio de República, Rio de Janeiro (uma vez que já fiz, na companhia da repórter e pesquisadora Mariana Filgueiras), para se reunir material tão farto que não caberia num só volume. Principalmente, de 1964 a 1984, os tais anos dos quais ainda há quem tenha saudade.

Escolho uma arte em que os danos não têm sido tão graves: a música. De traje, raros são os casos uma vez que o de Geraldo Vandré, cuja curso foi interrompida por justificação de uma cantiga, “Para não expor que não falei das flores”, do qual sentido só foi percebido pelos censores quando, cantada em coro por todo o Maracanãzinho, virou uma espécie de hino contra a ditadura. Naqueles tempos, a música era um dos alvos mais frequentes da burra sanha dos censores.

Em resguardo da moral da mulher brasileira, pela preservação do linguagem pátrio, para manter longe o comunismo ou para não se falar de tema tão incômodo uma vez que a homossexualidade, tudo era motivo para o censor sacar sua arma: caneta.

Em 1971, inspirado no interesse do cantor Mário Rei pelos pregões da Bolsa, Chico Buarque dedicou-lhe um samba repleto de termos usados no mercado de ações: “Comprei na bolsa de amores/As ações melhores que encontrei por lá/Ações de uma morena dessas/Que dão lucro à beça/Pra quem sabe jogar/ Mas o mercado entrou em baixa/Estou sem zero em caixa/Já perdi meu lote/Minha morena me esquecendo/Não deu dividendo, nem deixou filhote”.

O censor não só vetou o samba, que só chegaria ao público 22 anos depois, uma vez que se permitiu um lauto observação:

“O responsável parece estar de uns tempos para cá muito preocupado em denegrir a reputação de todas as mulheres, vide uma de suas últimas composições, ‘Minha história’, que relata a vida de um varão fruto de uma prostituta”.

O censor não entendeu a versão de Chico para “Gesùbambino”, cantiga do italiano Lucio Dalla. E “todas as mulheres”, no caso da letra em português, era unicamente uma pobre mãe transformada em prostituta pelo censor.

A língua portuguesa, sua preservação, seu compromisso com o bom paladar e, principalmente, o que certas palavras podem querer expor (sem expor), estavam entre as preocupações dos censores, entre estes o beque recta da seleção brasileira de 1950. Se até poemas de Mário de Andrade (1893-1945) foram cassados pela ditadura, imaginem os sambas de Adoniran Barbosa, quase todos no linguagem coloquial, com erros e gírias próprios da população...

paulistana mais pobre. Cinco de seus sambas foram censurados em 1973, um deles inédito. Uma censora culta achou de mau paladar versos que falavam em “tauba de tiro ao álvaro” e rimavam “artomorve” com “revorve”. Pelo menos, deu conselhos ao compositor: regravar coisas uma vez que “O Arnesto nos convidô prum samba, ele mora no Brás/Nóis fumo e não encontremo ninguém?/Nóis vortemo cuma baita duma réiva/Qui dôtra vez nóis num vai mais…” assim: “O Ernesto nos convidou para um samba, ele mora no Brasil/Nós fomos e não encontramos ninguém/ Voltamos com baita de uma raiva/Em outra vez não vamos mais”. Recomendação que Adoniram achou por muito não seguir.

Censuras musicais contra a esquerda podem vir mais de cima, de gente “mais preparada” para evitar qualquer prenúncio que surja, inclusive na música. Pois foi justamente um ministro, o da Justiça, Armando Falcão, quem proibiu que o balé “Romeu e Julieta”, produzido e transmitido pela BBC de Londres para mais de centena países, comprado e anunciado pela TV Orbe, fosse exibido em 1976. Motivo: sendo russo, o Balé Bolshoi “poderia apresentar uma leitura comunista da tragédia de Shakespeare”. Aproveitou-se a ocasião para se negar os vistos para que o Bolshoi se exibisse no Brasil, uma vez que vinha sendo tentado por quase um ano.

Foi também política a increpação a “Calabar, o encómio da traição”, peça músico de Ruy Guerra e Chico Buarque, escrita em 1973 para ser encenada no ano seguinte. Não foi. Partiu do Ministério do Tropa a proibição –– da peça, do título e até da proibição, que não podia ser divulgada. Na história, Domingos Fernandes Calabar passa de traidor a herói ao se unir aos holandeses contra os portugueses, em 1632, durante a Insurreição Pernambucana. O texto de Chico e Ruy fala de ações contra o povo, agravo de poder, tortura, a má legado lusitana, detalhes incômodos ao governo militar.

Mas foi permitido a Chico gravar um disco com as canções, desde que certos reparos fossem observados. Zero de título, zero de cobertura chamativa, zero de canções uma vez que “Vence na vida quem diz sim”, debochada apologia da subserviência, e “Ana de Amsterdam”, a da leito, da cana, fulana, sacana. “Bárbara”, cantiga que fala do paixão de Ana por ela, só não foi censurada porque um dos censores, numa de inteligente, garantiu que uma simples mudança na letra já gravada jogaria para debaixo do tapete a clara menção ao paixão de uma mulher por outra. Tudo muito. Nos versos “Vamos ceder enfim à tentação de nossas bocas cruas/E reprofundar no poço escuro de nós duas”, a voz de Chico é apagada sobre a vocábulo duas. Já em outros versos, o censor deixou passar “O meu direcção é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no termo da noite serei tua”.

São casos antigos para reconhecer que a increpação já foi mais dura do que a que pode se institucionalizar no Brasil de hoje. Mais dura, mas não necessariamente menos burra.



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