Adriana Calcanhotto desfolha a bandeira e a ‘Rosa dos ventos’ no curso político de ‘Um show só’ | Blog do Mauro Ferreira
Artista: Adriana Calcanhotto
Sítio: Teatro Riachuelo (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 5 de setembro de 2020
♪ Show resenhado a partir de transmissão online feita pelo projeto Teatro Riachuelo – De palco destapado
♪ A mulher do Pau Brasil está só. A sós na cena armada com requinte no palco do Teatro Riachuelo, essa mulher, essa senhora artista chamada Adriana Calcanhotto, desfolha a Bandeira do Brasil para servir verdades tropicais em mais um festim músico repleto de signos antropofágicos.
Na cena de Um show só, espetáculo único orquestrado pela artista sob a direção de Murilo Alvesso e apresentado na noite de 5 de setembro de 2020, a Bandeira do Brasil aparece perfurada uma vez que atavio cênico que corrobora as intenções do show.
Não há ordem e tampouco progresso, eis a mensagem. Um buraco ao meio da bandeira simboliza a exiguidade de justiça social nesse “país preto e racista”, assim caracterizado pela compositora na letra de Dois de junho, impactante música inédita apresentada entre as nove já conhecidas composições que formam o repertório autoral do álbum Só, ponto de partida para a geração de Um show só.
O título Dois de junho se refere à data em que, neste ano de 2020, menino de cinco anos, Miguel Otávio Santana da Silva, rebento da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, morreu ao desabar do nono andejar do prédio do Recife (PE) em que Mirtes trabalhava na lar de Sari Mariana Costa Gaspar Côrte Real, a patroa negligente responsabilizada pela morte de Miguel.
Nos versos de Dois de junho, Calcanhotto narra essa tragédia social sem trova – porque “a verdade não rima, a verdade não rima, a verdade não rima” – e com a rispidez do toque escabroso da guitarra. Nessa melodia que recusa a venustidade da melodia para manter o foco na mensagem, transmitida com letra evocativa das narrativas épicas de Bob Dylan, a mulher do Pau Brasil expõe o buraco fundo em que está jogado um país que amarga quarentena fragmentada pela desigualdade e pela irresponsabilidade.
Adriana Calcanhotto usa um chapéu da marinha quando canta ‘Eu vi você sambar’ em ‘Um show só’ — Foto: Reprodução / Vídeo
Para mapear esse Brasil sem direção, Calcanhotto também desfolha Rosa dos ventos (Chico Buarque, 1971) porque, na gente desse país, “deu o hábito de caminhar pelas trevas, de tirar leite das pedras e de ver o tempo percorrer” sem mudança real. A melodia se agiganta em versão sem a pulsão dramática de Maria Bethânia, tradutor referencial de Rosa dos ventos e da vida de Calcanhotto.
Porquê se quisesse estipular essa gente do sono dos séculos, a mulher do Pau Brasil fez amanhecer um espetáculo nascido das circunstâncias emergenciais do isolamento social, tal uma vez que o disco Só. Contra o caos, Calcanhotto faz (ótima) música em Um show só.
Partindo de versos do poeta Haroldo de Campos (1929 – 2003), publicado no livro Entremilênios (2009), a musa pós-tropicalista não “se medusa” e segue roteiro autoral que alinha as nove canções de quarentena do álbum Só. Porquê se estivesse sendo filmada em plano-sequência, Calcanhotto encadeia essas músicas quase na ordem do disco lançado em 29 de maio.
Adriana Calcanhotto recita trecho de soneto de Camões em ‘Um show só’ — Foto: Reprodução / Vídeo
Analisadas em conjunto, as composições Ninguém na rua, Era só, Eu vi você sambar (com a cantora usando um chapéu de marinha), O que temos (com o som percussivo das teclas de uma máquina de ortografar e, ao termo, o batuque de tampas de panelas), Sol quadro (samba em que entra em cena a imagem da esburacada Bandeira do Brasil), Tive notícias (a grande melodia de paixão do disco, apresentada em formato voz e violão), Lembrando da estrada...
(melodia nostálgica dos bastidores da turnê que cresceu no palco), Corre o munda – em das quais curso emerge todo o sentimento da artista pela cidade portuguesa de Coimbra em número introduzido por soneto de Luís de Camões (1524 – 1580) sobre o rio Mondego, popularmente publicado uma vez que Munda – e o funk da quarentena Bunda lê lê formam significativo quadro de emoções e impressões singulares surgidas na quarentena.
Ao termo do funk, ouve-se um “vai, vai, vai, vai, vai” na voz de Moraes Moreira (1947 – 2020), captada na gravação de Só danço samba (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1962) feita pelo cantor para songbook de Vinicius de Moraes (1913 – 1980) editado em 1993. O álbum Só é devotado a Moraes, morto em abril.
No “bis”, encenado pela cantora para a plateia que assistia ao show por telas de TVs, computadores ou celulares, Calcanhotto apresenta com orgulho o violão herdado do cantor Orlando Silva (1915 – 1978) – tio de Andréa Franco, atual empresária da artista – e afaga o coração do público virtual com versos acalentadores de Tudo igual, a outra música inédita do roteiro de Um show só.
E portanto a mulher do Pau Brasil sai de cena, tão só uma vez que entrara no palco, ao som da base da melodia Lembrando da estrada. A bandeira já está desfolhada pela “musa que não se medusa” enquanto o Brasil aguarda o reinício da manhã tropical.
Adriana Calcanhotto canta 14 músicas no roteiro de ‘Um show só’ — Foto: Reprodução / Vídeo
♪ Eis o roteiro seguido em 5 de setembro de 2020 por Adriana Calcanhotto na estreia e fecho da turnê de Um show só :
♪ Poema de Haroldo de Campos
1. Ninguém na rua (Adriana Calcanhotto, 2020)
2. Era só (Adriana Calcanhotto, 2020)
3. Eu vi você sambar (Adriana Calcanhotto, 2020)
4. O que temos (Adriana Calcanhotto, 2020)
5. Sol quadro (Adriana Calcanhotto, 2020)
6. Rosa dos ventos (Chico Buarque, 1971)
7. Tive notícias (Adriana Calcanhotto, 2020)
8. Dois de junho (Adriana Calcanhotto, 2020)
9. Lembrando da estrada (Adriana Calcanhotto, 2020)
♪ Soneto de Luís de Camões (texto)
10. Corre o munda (Adriana Calcanhotto, 2020) – com citação da Balada de Coimbra (José Eliseu, 1972) no toque da guitarra portuguesa de Carlos Paredes
11. Bunda lê lê (Adriana Calcanhotto, 2020) – com citação de Só danço samba (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1962) na voz de Moraes Moreira
12. Esquadros (Adriana Calcanhotto, 1992)
13. Vambora (Adriana Calcanhotto, 1998)
14. Tudo igual (Adriana Calcanhotto, 2020)
Natividade Notícia -> :Fonte Notícia


